São cinco da manhã e eu estou aqui sem sono a lembrar-me de um rapaz que em tempos idos conheci e a quem me associei em determinado empreendimento.
O jovem, que vinha de uma situação complicada, sem expectativas nem dinheiro, conheceu, quase de um dia para o outro, um «mundo» que até então lhe estava vedado e do qual, muito certamente, só presumia existir, se é que naquela altura ele presumiria o que quer que fosse.
Cordato, bem educado, simpático e altamente adaptável, o meu mais novo «parceiro» aprendeu rapidamente o que pôde e não demorou a sentir-se «como peixe na água» na sua nova situação, feliz e contente dos seus novos relacionamentos, das suas novas roupas, do seu novo saber e, é claro, dos seus adequados proventos.
Tempo depois, sem que eu lhe tivesse sequer marcado o primeiro «exame», o rapaz achou que já tinha completado o «curso», que já era «doutorado», e resolveu partir à descoberta de novas oportunidades por sua conta e risco.
Encontrei-o no mês passado, numa visita que fiz a Marrocos e admirei-me de o ver e de como o vi: falou-me muito dos seus novos empreendimentos e das suas riquezas, dos seus negócios mirabolantes, das acções e conexões, mas a verdade é que o vi sem grande brilho, sem carro e com as mesmas roupas que tinha quando me voltou as costas.
Não voltei a pensar no assunto. Porém, dias depois, voltei a encontrá-lo na região de Hassilabied, um bocado ainda distante das dunas de Erg Chebbi, no sudeste, e, tendo eu parado para o cumprimentar, ele limitou-se a dizer que se tinha perdido do grupo com que viajava e que, depois de percorrer vários quilómetros a pé, estava «morto de sede» e só queria mesmo um pouco de água.
Recordei os tempos em que tentei, debalde, ensinar aquele jovem tão imprudente quanto impetuoso...
Olhei-o, queimado do Sol impiedoso, coberto do pó do deserto, andrajoso e sequioso, e disse-lhe:
- Nós vamos acampar aqui durante alguns dias e a nossa água está racionada, pelo que não posso dispensar-te nenhuma. Porém, eu trouxe várias gravatas a mais e posso dispensar-te uma...
Olhou-me incrédulo - acho que até com ódio - e gritou:
- Eu quero água! não quero a merda das suas gravatas para nada! água!... ouviu bem seu presunçoso? eu preciso é de um pouco de água para não morrer à sede...
Ainda insisti três ou quatro vezes em lhe oferecer uma gravata, fiz notar até que eram lindas, de seda, caras, mas o rapaz ía tendo uma apoplexia ali mesmo e eu desisti.
- Bem, rematei eu, se é apenas a água que queres, vais encontrá-la no Hotel Bari El Maroc que fica nesta direcção (apontei o lugar no mapa) e a pouco mais de quatro quilómetros.
Virou costas e seguiu sem agradecer, vociferando entre dentes algo que não percebi.
Horas e horas volvidas, arrastando-se penosamente e aos trambolhões pela areia fervente, o meu ex-«parceiro», quase exangue, apareceu de novo no horizonte e eu mandei que fossem buscá-lo e perguntei curioso:
- Não me digas que não deste com o Hotel!... era sempre a direito e nem existe outro! tinhas de o encontrar forçosamente!...
Quase imperceptível, às portas da morte, balbuciou-me:
- Encontrar eu encontrei-o! o que eu não sabia era que só se podia entrar de gravata...
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