que não queria
ser ursa
Era uma vez, em tempos que já lá vão, uma linda menina, de olhos cor-do-mar, muito vivos e brilhantes, e cabelos que resplandeciam nos seus cachos dourados que se prolongavam pelas costas e lhe davam um ar de anjinho caído dos Céus.
Um dia, a menina dos cachos dourados, corria atrás de uma borboleta de asas rendilhadas e multicolores e perdeu-se na floresta. Caminhou, caminhou, caminhou, perdeu-se, perdeu-se, perdeu-se e, já noite adentro, acabou por ir bater à porta de uma cabana de aspecto miserando e que lhe pareceu abandonada. A porta estava aberta e a menina dos cachos dourados atreveu-se a entrar pois tremia de frio e já estava quase morta de cansaço. No interior havia uma mesa com leite e bolachas e uma cama. Então a menina dos cachos dourados comeu as bolachas, bebeu o leite e deitou-se na cama a dormir. Dormiu tão profundamente, a menina dos cachos dourados, que nem se apercebeu da chegada de um enorme e horrível urso, pois aquela era a cabana onde ele habitava.
O urso da floresta, mal entrou na cabana, dirigiu-se imediatamente à mesa onde tinha deixado as suas bolachas e o seu leite, mas nada encontrou. Ficou piurso, o que quer dizer, ficou pior que um urso. E logo a seguir, quando se preparava para dormir, deu conta de que a sua cama tinha sido ocupada pela menina dos cachos dourados.
Muito zangado com aquele atrevimento, o urso ergueu-se nas patas traseiras e com urros assustadores acordou a menina dos cachos dourados e grunhiu-lhe: comeste as minhas bolachas, bebeste o meu leite e ocupaste a minha cama, portanto, eu agora vou-te comer. E, se bem o disse, melhor o fez: num gesto rápido e feroz arrancou da cama a menina dos cachos dourados, atirou-a sem cerimónias de encontro à banca da cozinha e comeu-a. Boca enorme, arreganhada e mal-cheirosa, escorrendo baba por entre os dentes amarelados, o urso da floresta comeu a menina dos cachos dourados sem dó nem piedade. Comeu-a uma vez, duas vezes, três vezes, até cair para o lado com um esgar de inequívoca satisfação.
“Yes! Yes! Yes! Fuck me seu urso bruto e mauzão! Oh yes! Oh my God! Fuck my ass com esse teu big dick de urso estúpido e selvagem!” – gritava a menina dos cachos dourados, assim mais ou menos em inglês, que era para o urso não desconfiar que ela estava a adorar. Isso não podia acontecer, pelo menos assim logo no primeiro encontro.
Fumaram um cigarro e não disseram mais nada um ao outro durante o resto da noite. Depois adormeceram saciados e tranquilos na mesma cama, a menina dos cachos dourados e o urso da floresta.
No dia seguinte e nos dias que se seguiram, a menina dos cachos dourados continuou a comer as bolachas do urso, a beber-lhe o leite e a dormir na sua cama. O urso, por sua vez, fazia o que estava nas suas competências: comia-a e voltava a comê-la.
Passaram meses e corria bem a vida de um e outro lá na cabana da floresta, até que um dia, numa tarde solarenga e convidativa, a menina dos cachos dourados resolveu-se a sair para um passeio. Cumprimentou os passarinhos que chilreavam de árvore em árvore, distribuiu beijinhos pelos malmequeres que dançavam à beira do caminho e correu atrás dos raios de sol que se esforçavam por atravessar a folhagem espessa de árvores anciãs. Mais adiante, no ribeiro que serpenteava pachorrento por entre pedras musgosas, a menina dos cachos dourados debruçou-se feliz por sobre as águas puras e cristalinas. Porém, quando admirava fascinada os brilhos prateados das pequeníssimas ondulações do ribeiro, muito se assustou e não conteve um grito de surpresa e dor: é que o seu reflexo não era o seu reflexo! quer dizer, a imagem da menina dos cachos dourados tinha desaparecido e em seu lugar estava a imagem de uma ursa vulgar de floresta, igual a todas as outras ursas vulgares de floresta que nós conhecemos.
Visivelmente perturbada e muito assustada, foi para casa muito triste e fartou-se de chorar a perda dos seus cabelos cor-do-sol cujos cachos dourados pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus.
Quando o urso da floresta chegou a casa e a viu debulhada em lágrimas fingiu-se muito surpreendido, mas a verdade é que tinha sido ele próprio a lançar à menina dos cachos dourados aquele tão terrível encantamento, porque ele era um urso bruxo, daqueles ursos assim tão bruxos, tão bruxos, que até quando passava na rua as pessoas exclamavam surpresas ‘fogo, pá, até parece que és bruxo’.
Bem vistas as coisas, o urso era um urso pardo mas não era parvo. E uma ursa lá na cabana dava-lhe muito jeito.
(tipo aquela canção do Marco Paulo: uma ursa na cama….)
O resto da noite foi uma imagem tristíssima e dolorosa, com a menina dos cachos dourados, agora ursa, a chorar lágrimas de ursa, e o urso a tentar convencê-la de que estava tudo bem, que assim é que era bom, e que, afinal, tinham-se acabado as diferenças entre os dois, eram duas almas gémeas e não havia razões para tanta choradeira.
Aos poucos a ex-menina dos cachos dourados foi-se habituando a conviver com a ursa em que se tinha transformado, deixou de ir ao cabeleireiro e à manicura e nunca mais comprou nem vestidos nem sapatos. Agora passava os dias a lamber a pelagem negra e espessa, a rebolar-se prazenteiramente aos domingos na lama à beira do rio e a pescar com as suas garras os salmões que depois grelhava com molho de limão, petisco que fazia as delícias do urso da floresta.
De tempos a tempos, quando havia visitas lá em casa, a ex-menina dos cachos dourados pegava no seu álbum de fotografias e contava a todos como ela era antes de se ter transformado em ursa. Aqui… aqui era quando eu tinha 5 aninhos… olha, esta foi da comunhão… olha aqui foi quando entrei para o liceu…esta foi do meu baile dos finalistas… etc… mas, para grande tristeza dela, todos se riam e faziam pouco, porque ninguém acreditava que aquela ursa tivesse sido algum dia uma menina de cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus. Podia lá ser? Ná! ná! ná! Todos viam bem que ela era uma ursa da floresta igual a todas as outras ursas da floresta que conhecemos e ponto final.
Isto doía muito à ex-menina dos cachos dourados. O facto de não acreditarem nela era o que mais lhe custava e era por isso que chorava muito, à noite, antes de adormecer.
Um dia encheu-se de coragem e tomou uma decisão. Tinha ouvido falar numa velhinha eremita que vivia numa gruta distante e que tinha fama de ser entendida nas coisas do oculto. Resolveu que tinha de saber o que se passava com ela e o porquê da sua transformação. Lá chegada e posto ao que ía ouviu a verdade terrível da boca da velhinha entendida: o urso da floresta com quem vivia era um bruxo muito malvado, e tinha-lhe lançado um encantamento desde o primeiro dia. Esse encantamento ficava mais forte à medida que a menina dos cachos dourados limpasse e varresse a cabana, cozinhasse, engomasse as camisas e cosesse os buracos das meias – que eram mais que muitos, porque, como se sabe, os ursos rompem muito as meias no sítio dos dedos grandes das patas, vá-se lá saber porquê.
- “E não se pode desfazer esse encantamento? Não se pode fazer nada para que eu volte a ser a menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados me pendiam por sobre as costas e me faziam parecer um anjinho caído dos Céus?”, questionou a ex-menina dos cachos dourados na sua inocência.
- “Poder, pode!”, retorquiu-lhe a velhinha com um sorriso enigmático no rosto enrugado, carcomido e enegrecido. “Eu duvido é que tu, agora que te transformaste em ursa, sejas capaz de enfrentar tão grande desafio. Porque é mesmo de um grande desafio que eu estou a falar. O encantamento que te foi lançado é muito poderoso e só poderá ser anulado se tiveres muita força e muita coragem. Primeiro tens de fugir: tens de fugir já da cabana do urso da floresta e fugir para muito e muito longe, porque ele é muito mau e irá correr atrás de ti com falinhas mansas. Não podes deixar que isso aconteça, porque se isso acontecer é a tua perdição e ficarás ursa para toda a vida”.
- “E basta fugir dele? Basta fugir e volto a ser a menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados me pendiam por sobre as costas e me faziam parecer um anjinho caído dos Céus?”, balbuciou em desespero a ex-menina dos cachos dourados, desconfiada do que lhe parecia ser uma tarefa demasiado fácil.
- “Ná, ná ná”, sentenciou a velhinha com voz grave. “Fugir é apenas o primeiro passo. Depois vem a fase do renascimento, que consiste em abrires as pernas a todos os ursos que encontrares pelos caminhos. E aviso-te desde já: não sejas parca nas vontades nem ursa nas morais. Sê generosa de corpo e alma, mais do primeiro que da segunda. Faz dos teus buracos património da humanidade, pois quantos mais ursos te desinquietarem as cuecas mais rápida e acertadamente te livrarás do feitiço que te foi lançado.”
E com estas palavras a velhinha disse o que tinha a dizer e mais lhe não foi exigido.
A ex-menina dos cachos dourados, perdida por entre incontidas emoções, mas decidida ao que tinha decidido, deu corda aos calcantes e bazou para o mais longe possível da cabana onde habitava o urso da floresta. Caminhou dia e noite, sem destino nem descanso, até que foi dar a uma parte da floresta que nem conhecia nem lhe sabia o nome. De qualquer modo, pareceu-lhe um destino tão bom como qualquer outro e alugou um quarto na primeira residencial para ursas que encontrou.
No dia seguinte, bem cedinho, levantou-se cheia de coragem e disposta a enfrentar o desafio a que tinha metido ombros para se libertar o mais rapidamente possível do feitiço que o urso da floresta lhe tinha lançado. Na sua cabeça ecoavam ainda as palavras sentenciosas da velhinha da gruta: “não podes ser parca nas vontades nem ursa nas morais”. Portanto, fosse como fosse, a verdade é que estava decidida a terminar de vez com a sua condição de ursa, igual a todas as outras ursas vulgares de todas as vulgares florestas.
Estava a meio das suas congeminações, quando dois enormes e corpulentos ursos da polícia municipal, acabada de instituir naquela parte da floresta, se aproximaram num Nissan Patrol, Ray-Ben’s comprados nos ‘lellos’, dentuça à mostra e grunhidos de poucos amigos. Assustada, mas disposta a enfrentar fosse o que fosse, a ex-menina dos cachos dourados fingiu que não era nada com ela e pôs-se a lamber o pelo de forma insidiosa e displicente. Rugido para lá e rugido para cá, réu-béu-béu, pardais ao ninho, eis senão quando os ursos, ao princípio tão ameaçadores, quase se transformaram em ursinhos de peluche, soltando sons de acasalamento e roçando as partes pudibundas na casca das árvores mais próximas, e distribuindo jactos poderosos de urina em todas as direcções, numa marcação de território própria dos machos com cio.
Dois já estavam e de uma só penada! Afinal, pensou para os seus botões, a coisa não é assim tão difícil como se poderia pensar. E a seguir vieram mais dois, e ora dá cá um e depois mais um e a seguir dá outro, e a coisa compôs-se porque as notícias espalham-se e uma ursa de pernas abertas não é coisa que se deite fora. À noite, numa inteligente prospecção de mercado aos bares e às discotecas daquela parte longínqua da floresta, a ex-menina dos cachos dourados encontrou mais ursos, uns daqueles que fazem segurança às portas e outros dos que se encontram a vender copos atrás dos balcões.
Pouco tempo depois, e sem grande esforço, a ex-menina dos cachos dourados percebeu a facilidade da sua demanda: ao mesmo tempo que lutava contra o feitiço que o urso da floresta lhe tinha lançado, tinha também, e sem esforço adicional, infracções perdoadas, acessos facilitados nos bares e discotecas e copos até cair de cú. E valha a verdade, ela acabava sempre por adorar mais aquela parte do cair de cú.
Em pouco tempo, realmente em muito pouco tempo, cumpriram-se as profecias da velhinha da gruta e a ex-menina dos cachos dourados transformou-se finalmente na menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados lhe pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus.
O feitiço tinha desaparecido, como que por milagre, com a preciosa ajuda dos ursos já referidos e também com o contributo de outros que entretanto se aproximavam pelo cheiro, ursos de idades mais avançadas, feios, decrépitos, gordos até ao nojo, mas não menos importantes, nem negligenciáveis, porque são daqueles ursos que carregam os telemóveis, enchem os depósitos de combustível e oferecem lingerie daquela cara que não oferecem às ursas que têm lá em casa.
A menina dos cachos dourados viveu muitos anos e foi muito feliz. Nunca casou, nunca teve filhos, e apesar de ter voltado à sua figura de sempre, quer dizer, de menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados lhe pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus, apesar disso, dizíamos nós, nunca mais deixou de abrir as pernas a todos os ursos que lhe aparecem pela frente.
Era uma vez, em tempos que já lá vão, uma linda menina, de olhos cor-do-mar, muito vivos e brilhantes, e cabelos que resplandeciam nos seus cachos dourados que se prolongavam pelas costas e lhe davam um ar de anjinho caído dos Céus.
Um dia, a menina dos cachos dourados, corria atrás de uma borboleta de asas rendilhadas e multicolores e perdeu-se na floresta. Caminhou, caminhou, caminhou, perdeu-se, perdeu-se, perdeu-se e, já noite adentro, acabou por ir bater à porta de uma cabana de aspecto miserando e que lhe pareceu abandonada. A porta estava aberta e a menina dos cachos dourados atreveu-se a entrar pois tremia de frio e já estava quase morta de cansaço. No interior havia uma mesa com leite e bolachas e uma cama. Então a menina dos cachos dourados comeu as bolachas, bebeu o leite e deitou-se na cama a dormir. Dormiu tão profundamente, a menina dos cachos dourados, que nem se apercebeu da chegada de um enorme e horrível urso, pois aquela era a cabana onde ele habitava.
O urso da floresta, mal entrou na cabana, dirigiu-se imediatamente à mesa onde tinha deixado as suas bolachas e o seu leite, mas nada encontrou. Ficou piurso, o que quer dizer, ficou pior que um urso. E logo a seguir, quando se preparava para dormir, deu conta de que a sua cama tinha sido ocupada pela menina dos cachos dourados.
Muito zangado com aquele atrevimento, o urso ergueu-se nas patas traseiras e com urros assustadores acordou a menina dos cachos dourados e grunhiu-lhe: comeste as minhas bolachas, bebeste o meu leite e ocupaste a minha cama, portanto, eu agora vou-te comer. E, se bem o disse, melhor o fez: num gesto rápido e feroz arrancou da cama a menina dos cachos dourados, atirou-a sem cerimónias de encontro à banca da cozinha e comeu-a. Boca enorme, arreganhada e mal-cheirosa, escorrendo baba por entre os dentes amarelados, o urso da floresta comeu a menina dos cachos dourados sem dó nem piedade. Comeu-a uma vez, duas vezes, três vezes, até cair para o lado com um esgar de inequívoca satisfação.
“Yes! Yes! Yes! Fuck me seu urso bruto e mauzão! Oh yes! Oh my God! Fuck my ass com esse teu big dick de urso estúpido e selvagem!” – gritava a menina dos cachos dourados, assim mais ou menos em inglês, que era para o urso não desconfiar que ela estava a adorar. Isso não podia acontecer, pelo menos assim logo no primeiro encontro.
Fumaram um cigarro e não disseram mais nada um ao outro durante o resto da noite. Depois adormeceram saciados e tranquilos na mesma cama, a menina dos cachos dourados e o urso da floresta.
No dia seguinte e nos dias que se seguiram, a menina dos cachos dourados continuou a comer as bolachas do urso, a beber-lhe o leite e a dormir na sua cama. O urso, por sua vez, fazia o que estava nas suas competências: comia-a e voltava a comê-la.
Passaram meses e corria bem a vida de um e outro lá na cabana da floresta, até que um dia, numa tarde solarenga e convidativa, a menina dos cachos dourados resolveu-se a sair para um passeio. Cumprimentou os passarinhos que chilreavam de árvore em árvore, distribuiu beijinhos pelos malmequeres que dançavam à beira do caminho e correu atrás dos raios de sol que se esforçavam por atravessar a folhagem espessa de árvores anciãs. Mais adiante, no ribeiro que serpenteava pachorrento por entre pedras musgosas, a menina dos cachos dourados debruçou-se feliz por sobre as águas puras e cristalinas. Porém, quando admirava fascinada os brilhos prateados das pequeníssimas ondulações do ribeiro, muito se assustou e não conteve um grito de surpresa e dor: é que o seu reflexo não era o seu reflexo! quer dizer, a imagem da menina dos cachos dourados tinha desaparecido e em seu lugar estava a imagem de uma ursa vulgar de floresta, igual a todas as outras ursas vulgares de floresta que nós conhecemos.
Visivelmente perturbada e muito assustada, foi para casa muito triste e fartou-se de chorar a perda dos seus cabelos cor-do-sol cujos cachos dourados pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus.
Quando o urso da floresta chegou a casa e a viu debulhada em lágrimas fingiu-se muito surpreendido, mas a verdade é que tinha sido ele próprio a lançar à menina dos cachos dourados aquele tão terrível encantamento, porque ele era um urso bruxo, daqueles ursos assim tão bruxos, tão bruxos, que até quando passava na rua as pessoas exclamavam surpresas ‘fogo, pá, até parece que és bruxo’.
Bem vistas as coisas, o urso era um urso pardo mas não era parvo. E uma ursa lá na cabana dava-lhe muito jeito.
(tipo aquela canção do Marco Paulo: uma ursa na cama….)
O resto da noite foi uma imagem tristíssima e dolorosa, com a menina dos cachos dourados, agora ursa, a chorar lágrimas de ursa, e o urso a tentar convencê-la de que estava tudo bem, que assim é que era bom, e que, afinal, tinham-se acabado as diferenças entre os dois, eram duas almas gémeas e não havia razões para tanta choradeira.
Aos poucos a ex-menina dos cachos dourados foi-se habituando a conviver com a ursa em que se tinha transformado, deixou de ir ao cabeleireiro e à manicura e nunca mais comprou nem vestidos nem sapatos. Agora passava os dias a lamber a pelagem negra e espessa, a rebolar-se prazenteiramente aos domingos na lama à beira do rio e a pescar com as suas garras os salmões que depois grelhava com molho de limão, petisco que fazia as delícias do urso da floresta.
De tempos a tempos, quando havia visitas lá em casa, a ex-menina dos cachos dourados pegava no seu álbum de fotografias e contava a todos como ela era antes de se ter transformado em ursa. Aqui… aqui era quando eu tinha 5 aninhos… olha, esta foi da comunhão… olha aqui foi quando entrei para o liceu…esta foi do meu baile dos finalistas… etc… mas, para grande tristeza dela, todos se riam e faziam pouco, porque ninguém acreditava que aquela ursa tivesse sido algum dia uma menina de cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus. Podia lá ser? Ná! ná! ná! Todos viam bem que ela era uma ursa da floresta igual a todas as outras ursas da floresta que conhecemos e ponto final.
Isto doía muito à ex-menina dos cachos dourados. O facto de não acreditarem nela era o que mais lhe custava e era por isso que chorava muito, à noite, antes de adormecer.
Um dia encheu-se de coragem e tomou uma decisão. Tinha ouvido falar numa velhinha eremita que vivia numa gruta distante e que tinha fama de ser entendida nas coisas do oculto. Resolveu que tinha de saber o que se passava com ela e o porquê da sua transformação. Lá chegada e posto ao que ía ouviu a verdade terrível da boca da velhinha entendida: o urso da floresta com quem vivia era um bruxo muito malvado, e tinha-lhe lançado um encantamento desde o primeiro dia. Esse encantamento ficava mais forte à medida que a menina dos cachos dourados limpasse e varresse a cabana, cozinhasse, engomasse as camisas e cosesse os buracos das meias – que eram mais que muitos, porque, como se sabe, os ursos rompem muito as meias no sítio dos dedos grandes das patas, vá-se lá saber porquê.
- “E não se pode desfazer esse encantamento? Não se pode fazer nada para que eu volte a ser a menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados me pendiam por sobre as costas e me faziam parecer um anjinho caído dos Céus?”, questionou a ex-menina dos cachos dourados na sua inocência.
- “Poder, pode!”, retorquiu-lhe a velhinha com um sorriso enigmático no rosto enrugado, carcomido e enegrecido. “Eu duvido é que tu, agora que te transformaste em ursa, sejas capaz de enfrentar tão grande desafio. Porque é mesmo de um grande desafio que eu estou a falar. O encantamento que te foi lançado é muito poderoso e só poderá ser anulado se tiveres muita força e muita coragem. Primeiro tens de fugir: tens de fugir já da cabana do urso da floresta e fugir para muito e muito longe, porque ele é muito mau e irá correr atrás de ti com falinhas mansas. Não podes deixar que isso aconteça, porque se isso acontecer é a tua perdição e ficarás ursa para toda a vida”.
- “E basta fugir dele? Basta fugir e volto a ser a menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados me pendiam por sobre as costas e me faziam parecer um anjinho caído dos Céus?”, balbuciou em desespero a ex-menina dos cachos dourados, desconfiada do que lhe parecia ser uma tarefa demasiado fácil.
- “Ná, ná ná”, sentenciou a velhinha com voz grave. “Fugir é apenas o primeiro passo. Depois vem a fase do renascimento, que consiste em abrires as pernas a todos os ursos que encontrares pelos caminhos. E aviso-te desde já: não sejas parca nas vontades nem ursa nas morais. Sê generosa de corpo e alma, mais do primeiro que da segunda. Faz dos teus buracos património da humanidade, pois quantos mais ursos te desinquietarem as cuecas mais rápida e acertadamente te livrarás do feitiço que te foi lançado.”
E com estas palavras a velhinha disse o que tinha a dizer e mais lhe não foi exigido.
A ex-menina dos cachos dourados, perdida por entre incontidas emoções, mas decidida ao que tinha decidido, deu corda aos calcantes e bazou para o mais longe possível da cabana onde habitava o urso da floresta. Caminhou dia e noite, sem destino nem descanso, até que foi dar a uma parte da floresta que nem conhecia nem lhe sabia o nome. De qualquer modo, pareceu-lhe um destino tão bom como qualquer outro e alugou um quarto na primeira residencial para ursas que encontrou.
No dia seguinte, bem cedinho, levantou-se cheia de coragem e disposta a enfrentar o desafio a que tinha metido ombros para se libertar o mais rapidamente possível do feitiço que o urso da floresta lhe tinha lançado. Na sua cabeça ecoavam ainda as palavras sentenciosas da velhinha da gruta: “não podes ser parca nas vontades nem ursa nas morais”. Portanto, fosse como fosse, a verdade é que estava decidida a terminar de vez com a sua condição de ursa, igual a todas as outras ursas vulgares de todas as vulgares florestas.
Estava a meio das suas congeminações, quando dois enormes e corpulentos ursos da polícia municipal, acabada de instituir naquela parte da floresta, se aproximaram num Nissan Patrol, Ray-Ben’s comprados nos ‘lellos’, dentuça à mostra e grunhidos de poucos amigos. Assustada, mas disposta a enfrentar fosse o que fosse, a ex-menina dos cachos dourados fingiu que não era nada com ela e pôs-se a lamber o pelo de forma insidiosa e displicente. Rugido para lá e rugido para cá, réu-béu-béu, pardais ao ninho, eis senão quando os ursos, ao princípio tão ameaçadores, quase se transformaram em ursinhos de peluche, soltando sons de acasalamento e roçando as partes pudibundas na casca das árvores mais próximas, e distribuindo jactos poderosos de urina em todas as direcções, numa marcação de território própria dos machos com cio.
Dois já estavam e de uma só penada! Afinal, pensou para os seus botões, a coisa não é assim tão difícil como se poderia pensar. E a seguir vieram mais dois, e ora dá cá um e depois mais um e a seguir dá outro, e a coisa compôs-se porque as notícias espalham-se e uma ursa de pernas abertas não é coisa que se deite fora. À noite, numa inteligente prospecção de mercado aos bares e às discotecas daquela parte longínqua da floresta, a ex-menina dos cachos dourados encontrou mais ursos, uns daqueles que fazem segurança às portas e outros dos que se encontram a vender copos atrás dos balcões.
Pouco tempo depois, e sem grande esforço, a ex-menina dos cachos dourados percebeu a facilidade da sua demanda: ao mesmo tempo que lutava contra o feitiço que o urso da floresta lhe tinha lançado, tinha também, e sem esforço adicional, infracções perdoadas, acessos facilitados nos bares e discotecas e copos até cair de cú. E valha a verdade, ela acabava sempre por adorar mais aquela parte do cair de cú.
Em pouco tempo, realmente em muito pouco tempo, cumpriram-se as profecias da velhinha da gruta e a ex-menina dos cachos dourados transformou-se finalmente na menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados lhe pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus.
O feitiço tinha desaparecido, como que por milagre, com a preciosa ajuda dos ursos já referidos e também com o contributo de outros que entretanto se aproximavam pelo cheiro, ursos de idades mais avançadas, feios, decrépitos, gordos até ao nojo, mas não menos importantes, nem negligenciáveis, porque são daqueles ursos que carregam os telemóveis, enchem os depósitos de combustível e oferecem lingerie daquela cara que não oferecem às ursas que têm lá em casa.
A menina dos cachos dourados viveu muitos anos e foi muito feliz. Nunca casou, nunca teve filhos, e apesar de ter voltado à sua figura de sempre, quer dizer, de menina dos cabelos cor-do-sol, cujos cachos dourados lhe pendiam por sobre as costas e a faziam parecer um anjinho caído dos Céus, apesar disso, dizíamos nós, nunca mais deixou de abrir as pernas a todos os ursos que lhe aparecem pela frente.
1 comentário:
Caro Herculano
O Filomeno deixo-lhe a seguinte resposta no meu Blog (caso não tenha revisitado)
"Tendría que mirarlo en un libro de la Biblioteca Gonzalo Torrente Ballester, donde lo leí, amigo Herc......"
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